10 Setembro - Shutter Island


Título original: Shutter Island

De: Martin Scorsese

Com: Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Emily Mortimer
Género: Drama, Thriller
Classificação: M/16
Origem: EUA
Ano: 2010
Cores, 138 min
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EUA. Verão de 1954. O xerife Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) e o seu parceiro Chuck Aule (Mark Ruffalo) são enviados para o Hospital Psiquiátrico Ashecliffe, na ilha Shutter, onde estão internados os mais perversos criminosos do país. O caso prende-se com Rachel Solando, uma perigosa assassina em série que desapareceu inexplicavelmente da sua cela e cuja única pista parece ser uma folha de papel com uma pergunta indecifrável.
Os médicos, funcionários e enfermeiras da instituição não parecem empenhados em cooperar com a investigação e há algo de particularmente misterioso com Dr. Cawley (Ben Kingsley), o director do hospital. Com um furacão a aproximar-se, rodeados por um ambiente psicótico e pacientes perigosos, ambos percebem que as suas vidas estão em risco e que podem não conseguir sair vivos desta ilha maldita.
Realizado por Martin Scorsese, é baseado na obra "Paciente 67" de Dennis Lehane (também autor de "Mystic River", adaptado para cinema por Clint Eastwood em 2003).


Jorge Mourinha, in PÚBLICO, em 23 de Fevereiro de 2010
A teoria da conspiração
Um magistral exercício de cinefilia elevada à potência máxima
Impõe-se um aviso prévio e inevitável: "Shutter Island" tanto mais impressionará quanto mais o espectador se abandonar sem restrições ao seu pesadelo claustrofóbico e progressivamente mais desorientante. É aí, nesse estado de vigília acordada entre o sonho e a realidade, que o novo filme de Martin Scorsese ganha toda a sua razão de ser: no modo como ele vai desconstruindo progressivamente uma realidade reconhecível até nada restar a não ser a nossa própria dúvida em relação ao que estamos a ver.
A imagem, nas mãos de um mestre, pode induzir em erro - já Hitchcock o dizia, mas "Shutter Island" desvia Hitchcock por via de De Palma para depois o alinhar com Fuller, Bava, Argento, Lang, Murnau, Tourneur e outros mestres da série B reavaliados como dignos da série A. E, já agora, está mesmo paredes-meias com o cinema de terror, é um objecto gótico e barroco onde Leonardo di Caprio, detective traumatizado pelas suas experiências na II Guerra, enviado a um hospital psiquiátrico numa ilha isolada ao largo de Boston, desce aos infernos onde a realidade e a loucura se fundem.
Exercício de estilo, pretexto para demonstrar como aprendeu as lições de tudo o que viu e as fez suas, manifestação de virtuosismo? Sim, sim, sim - mas sem a frieza do aluno aplicado, antes com o prazer mal disfarçado de quem tem gosto naquilo que faz e de quem o faz por prazer. É, aliás, isso que explica como este filme que, noutras mãos, seria uma espécie de De Palma-ersatz se torna, nas de Scorsese e do seu director de fotografia Robert Richardson, numa espantosa carta de amor ao cinema de género, das séries B fantásticas que Val Lewton produziu e Jacques Tourneur dirigiu para a RKO ("A Pantera", "Zombie") ao giallo italiano de Mario Bava ("A Máscara do Demónio") ou Dario Argento ("O Pássaro com Plumas de Cristal"), passando pelos grandes filmes negros da década de 1950 e pelos "Mabuse" de Lang ou o "Gabinete do Dr. Caligari" de Wiene (e é só impressão nossa, ou há ali ecos de Samuel Fuller e de Michael Powell?).
Isso faz de "Shutter Island" um "cadáver esquisito" tanto mais inesperado quanto não é, de todo, disto que estamos à espera hoje de um filme "de estúdio" com Leonardo di Caprio (que, a propósito, é um erro de "casting"; por mais que tente, não consegue atingir o nível de intensidade necessária para habitar a sua personagem). Scorsese filma como se houvesse sempre um detalhe inexplicavelmente fora do sítio, como se tudo isto fosse uma enorme alucinação, uma mistificação onde nunca sabemos o que é verdade e o que é mentira, sublinhada pela opressão da cenografia de Dante Ferretti e pela magnífica escolha de compositores contemporâneos feita por Robbie Robertson para a banda-sonora.
E essa mistificação faz parte do jogo de Scorsese, brincando com a arte do cinema como se nunca tivesse feito outra coisa na vida (e, na realidade, nunca fez). A arte de um grande cineasta reside, muitas vezes, no modo como se apropria de uma peça de "pulp fiction" como é esta e dela faz um filme que não poderia ter sido feito por mais ninguém. "Shutter Island" não é um "grande filme" de Scorsese, uma daquelas obras-primas (que, de qualquer maneira, já ninguém espera dele) - mas, dentro dos "pequenos filmes" que todos os realizadores veteranos têm direito a fazer, "Shutter Island" é um grande, grandíssimo filme.

Setembro 2010 - Cartaz


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3 Setembro - Tudo pode dar certo


Título original: Whatever Works

De: Woody Allen

Com: Larry David, Adam Brooks, Lyle Kanouse, Evan Rachel Wood
Género: Comédia
Classificação: M/12
Origem: EUA/FRA
Ano: 2009
Cores, 92 min
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Boris Yelnikoff (Larry David) é um génio da física que sofre de insatisfação crónica e desprezo pelo género humano. Depois de perder a mulher num divórcio, um prémio Nobel e de quase ter perdido a sua própria vida numa tentativa de suicídio mal sucedida, resolve dar largas à sua misantropia e isolar-se numa pequena casa na cidade de Nova Iorque. Um dia encontra à sua porta Melody (Evan Rachel Wood), uma jovem fugitiva do Mississípi, cuja inocência e alegria de viver contagiante contrastam com o cinismo do cientista. Com o passar do tempo a doce rapariga instala-se em sua casa e invade a sua vida, preenchendo todas as lacunas do insatisfeito Boris. As suas vidas parecem perfeitas até ao dia em que os pais dela resolvem aparecer e revolucionar tudo à sua volta...
Uma comédia romântica sobre os encontros e os desencontros amorosos, que marca mais um regresso de Woddy Allen.


Luís Miguel Oliveira, in PÚBLICO, 10 de Fevereiro de 2010
Tudo Pode dar Certo
Pela milésima vez Woody Allen a girar em torno de si próprio. Com um duplo, um Mr Hyde, que é um achado e faz meio-filme: Larry David. Talvez não funcione duas vezes, mas esta encarnação da misantropia (uma misantropia "espectacular", mas capaz de uma brusquidão cavernosa) que é a personagem de David traz uma energia nada despicienda ao cinema de Allen: ouvimos basicamente as mesmas piadas e apartes que já ouvimos noutros filmes, mas com a sensação - um engano consentido, digamos assim, porque não há nada como um misantropo sedutor - de que as ouvimos pela primeira vez. A graça é que, criativamente, o filme é a perfeita ilustração do seu lema: "whatever works"...


Jorge Mourinha, in PÚBLICO, em 4 de Fevereiro de 2010
Ó tempo volta pra trás
O novo Woody Allen é um reencontro com o "velho" Woody Allen dos seus tempos áureos? Sim, mas não do modo que estão a pensar
Tivesse Woody Allen assinado este "Tudo Pode Dar Certo" nos seus tempos áureos dos anos 1970 e 1980, talvez tivéssemos olhado para ele como um Allen menor e hoje estivéssemos à beira de uma reavaliação. Se tivesse sido rodado logo a seguir ao soberbo "Match Point", teríamos ficados convictos da ressurreição definitiva de um cineasta que andou um bocado aos papéis. Mas, como o vemos hoje, "Tudo Pode Dar Certo" é um dos "fogachos" pontuais que mostram ainda haver vida no velho mestre, aqui retomando de modo inspirado as coordenadas das suas velhas comédias nova-iorquinas a meio caminho entre o "screwball" clássico do neurótico à deriva e o romantismo terminal da busca do amor e do sentido para a vida.
Claro que o "herói" nominal, aqui interpretado por Larry David (ele de "Calma, Larry!" e "Seinfeld"), é basicamente, mais uma vez, Allen ele próprio mal disfarçado, mesmo que David empreste ao seu físico resmungão e misantropo uma "patine" confrontacional que o realizador dificilmente conseguiria invocar. Claro que o romance central (entre David no papel de um intelectual resmungão e uma soberba Evan Rachel Wood no papel de uma ingénua sulista caída de pára-quedas em Nova Iorque de quem ele vai ser um misto de mentor intelectual e amante incrédulo) parece decalcado de outros filmes (lembrámo-nos de "Manhattan", "et pour cause"). E, apesar (ou se calhar por causa) do soberbo trabalho fotográfico de Harris Savides, todo feito de subtis variações de luz e sombra, há muito de teatral nesta encenação do que, descobre-se entretanto, era um guião antigo que tinha ficado por rodar "na gaveta".
"Tudo Pode Dar Certo" é, então, uma história contemporânea de "Manhattan" que Allen, paradoxalmente, escrevera originalmente a pensar num actor específico (o comediante Zero Mostel, que recordamos, por exemplo, dos "Producers" originais de Mel Brooks, "Por Favor Não Mexam nas Velhinhas"), e que recuperou, reviu e actualizou para este filme. É isso que explica, ao mesmo tempo, o regresso das piadas imparáveis de "nonsense" "vintage", e a amargura singular dos seus últimos filmes que vem colorir o conjunto, como se "Tudo Pode Dar Certo" fosse uma síntese contemporânea dos Allen "clássicos" e "modernos" - o que esbarra logo a seguir na constatação de que os melhores dos Allen "modernos" ("Match Point" à cabeça de um pequeno contingente) são variações com maior ou menor originalidade sobre os seus motivos clássicos.
Mas isso, contudo, não nos deve afastar do essencial. E o essencial é que "Tudo Pode Dar Certo" vai reconfortar todos aqueles que achavam que Allen já não tinha nada a dizer e reacender a esperança (mesmo que vã) de ainda haver um "Manhattan" no veterano autor. Este filme não é, claro, outro "Manhattan", mas já ficamos contentes por ser outro "Balas sobre a Broadway". Afinal, tudo pode mesmo dar certo...

O Cinema ao Luar: 8,9 e 10 de Agosto.


Desde Agosto de 1995, quando com uma máquina de projectar de 16 mm e filmes cedidos gratuitamente pelo INATEL (John Ford, Charlie Chaplin, Elia Kazan...A Repulsa de Polanski...) ocupamos os Claustros do Museu durante 10 noites. Nos anos seguintes sucederam-se sessões a começar à 1 da manhã, incluindo uma mítica projecção de Mulholland Drive, de David Lynch.

Este ano começamos com – não podia deixar de ser – "Avatar", a última mega-produção fantástica de Cameron sobre musculados marines que após a invasão do planeta Pandora, deparam-se com os... azulados "Na'vi".

No dia seguinte, temos de novo connosco o Tiago Pereira, que volta a Amarante depois em Maio ter apresentado o seu documentário "Significado, a música portuguesa se gostasse dela própria" no Cinema Teixeira de Pascoaes. Pereira regressa agora com um projecto audiovisual muito interessante, que o junta ao música Vasco Ribeiro Casais e ao Vj João Chaves.

Na última noite, o documentário mais falado, mais discutido e, pois, mais polémico dos últimos anos: "Pare Escute e Olhe", de Jorge Pelicano - http://www.pareescuteolhe.com.

Cineclube de Amarante

Cinema ao Luar

Agosto
Claustros da Câmara Municipal

Sessões às 22 horas com entrada livre

Dia 8, domingo Avatar
Título original: Avatar
De: James Cameron
Argumento: James Cameron
Com: Sam Worthington, Zoe Saldana, Sigourney Weaver, Stephen Lang
Género: Acção, Aventura
Classificacao: M/6
http://www.castellolopesmultimedia.com/avatar/
EUA, 2009, Cores, 162 min.


Dia 9, 2ª feira OMIRI Project
Vasco Ribeiro Casais - Musician
Tiago Pereira - Image Concept & Vjing
João Chaves - Vjing

Omiri é um projecto que vive da dualidade antigo vs moderno.
Um músico e um vj partem das danças tradicionais e de instrumentos antigos e transformam-nos numa viagem audio-visual em que o moderno se funde com a tradição e esta se rejuvenesce, tornado-se viva e apta a ser vivida nos tempos de hoje.
O espectáculo OMIRI, explora simultâneamente duas vertentes: a criação de ambientes complexos dada pela sopreposição de camadas sonoras e visuais gravadas em tempo real e a improvisação em torno das mesmas.

http://vimeo.com/1123424
http://vimeo.com/1125637
http://vimeo.com/924325

Dia 10, 3ª feira
Pare, Escute, Olhe
De: Jorge Pelicano
Género: Documentário
Classificacao: M/6
http://www.youtube.com/watch?v=9fOpnFLhN5g&feature=player_embedded
Portugal, 2009, 100 min.

18 Junho - Um lugar para viver


Título original: Away We Go

De: Sam Mendes

Com: John Krasinski, Maya Rudolph, Carmen Ejogo, Jeff Daniels
Género: Comédia, Drama
Classificação: M/16
Origem: EUA/GB
Ano: 2009
Cores, 98 min
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Verona (Maya Rudolph) e Burt (John Krasinski) são namorados, têm 33 anos e fazem uma aterradora descoberta: vão ter um filho. Quando percebem que os pais dele vão deixar o país um mês antes do nascimento do bebé tomam consciência que já nada os prende ao lugar onde vivem. Decidem então fazer uma longa viagem pelos EUA e Canadá em busca de um lugar para viver e de um modelo familiar que os inspire no seu novo papel de pais. Pelo caminho vão reencontrar velhos amigos, alguns com famílias mais excêntricas, outros mais conservadores, mas todos com as suas próprias contrariedades e alegrias. No final ambos vão compreender que o lugar a que chamarão lar é, de todos, o detalhe menos importante...
O último filme de Sam Mendes ("Beleza Americana", "Caminho para a Perdição", "Revolutionary Road"), em estilo "road movie", fala sobre a beleza de cada recomeço e do pouco controlo que cada um pode ter sobre o seu próprio destino.


Mário Jorge Torres, in PÚBLICO, 8 de Abril de 2010
Um lugar para viver
Já se tinha percebido, pelos limites de "Revolutionary Road", que Sam Mendes dificilmente conseguiria voltar a atingir as grandezas de "Beleza Americana", a muitos níveis um filme em estado de graça.
No entanto, "Um Lugar para Viver" cumpre os objectivos a que se propõe: um inteligente exercício sobre as angústias quotidianas, encenado com rigor e com aquela precisão quase de marcação teatral, que constitui a grande imagem de marca do realizador. Oscilando entre um tom dramático e uma componente de alívio cómico, em doses equilibradas, o filme constrói personagens complexas (excelente direcção de actores) e resiste às facilidades de um registo patético, em que poderia cair, ao optar pelas aventuras e desventuras de um casal à procura de um ideal "lugar ao sol". Falta talvez o cinismo lúcido de "Beleza Americana", mas sobra a capacidade de narrar as pequenas surpresas de um microcosmos de reconhecível verosimilhança.


João Lopes, in DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 31 Março 2010
Refazendo a herança de Billy Wilder
Na árvore genealógica de Hollywood, Billy Wilder é um modelo exemplar do grande artesão: versátil e acutilante em qualquer género. Sam Mendes, de quem se estreou recentemente Um Lugar para Viver, gosta de o citar como uma inspiração.
Questionado sobre os cineastas que mais admira, Sam Mendes gosta de dizer que está fora do clube a que pertencem autores obsessivos como Alfred Hitchcock, Ingmar Bergman ou Jean-Luc Godard. O seu trabalho pauta-se pelo gosto da diversidade de géneros e modelos de produção. Quando evoca um clássico capaz de simbolizar tal agilidade, o nome que surge é Billy Wilder, o homem que, com a mesma verve, filmou Gloria Swanson na tragédia de Crepúsculo dos Deuses (1950) ou Marilyn Monroe na alegria de Quanto Mais Quente Melhor (1959).
Depois da guerra de Jarhead e das crueldades conjugais de Revolutionary Road, surge Um Lugar para Viver, filme mais devedor de uma certa nostalgia on the road enraizada no imaginário dos anos 60 do que da profusão de efeitos especiais (e dólares) que tem dominado Hollywood. Sam Mendes diz, com muita graça, que não acontece grande coisa no filme, pouco se avançando para além da premissa inicial: um jovem casal que vai ter o primeiro filho e parte à procura do lugar ideal para viver... Mas esse “não-acontecer” é profundamente paradoxal: este é um cinema de eventos microscópicos, habitado por uma intensidade emocional que se pode exprimir no tom aparentemente neutro de uma frase ou no silêncio que acompanha uma carícia.
Será, talvez, a mais bizarra das ironias, mas o certo é que um inglês como Sam Mendes aponta assim, ao cinema americano, a necessidade de preservar o melhor do seu património narrativo, em particular a riqueza imensa da tradição (melo)dramática. Dir-se-á que o cineasta desmentiu tudo isso ao assumir as rédeas do próximo James Bond... Mas não: primeiro, porque Bond é inglês; segundo, porque Billy Wilder era homem para fazer o mesmo.


Entrevista com o realizador, Sam Mendes

12 Junho - 15º Aniversário do Cineclube


Caros amigos,

Em Junho de 1995 queríamos*:

a) Fazer renascer o hábito de ver cinema em Amarante, desmistificando a ideia da impossibilidade deste tipo de projectos fora dos grandes centros urbanos;
b) Evitar a crescente desertificação da cidade por falta de alternativas culturais;
c) Rentabilizar, em prol da cultura, o apoio concedido pela Câmara Municipal;
d) Criar um cineclube que possa conduzir à ideia de que a obra de arte se torne semente do futuro, mola impulsionadora de uma visão nova das coisas, de um novo pensamento, de uma estética cinéfila, de uma nova formação cultural.

Se o Cineclube que pretendemos criar, puder ajudar a essa percepção e ao enriquecimento interior, ficaremos um pouquinho orgulhosos. Mesmo com imodéstia.

* excerto do folheto distribuído nas primeiras sessões do Cineclube de Amarante.

15 anos depois ainda cá andamos. Depois de exibirmos, em programação normal e ciclos temáticos, mais de 900 filmes, em mais de 1.250 sessões. Depois de realizarmos acções de formação, exposições, promovermos encontros com realizadores e actores, extensões de festivais de cinema, participarmos activamente em seminários, colóquios e encontros sobre cinema, marcarmos presença regular nos festivais e iniciativas de carácter cultural e cinematográfico. Depois de vários anos com a iniciativa Cinema ao Luar. Depois disto, alguma coisa deve ter ficado.


Sombras, um filme sonâmbulo

11 Junho - O Dia da Saia


Título original: La Journée de la Jupe

De: Jean-Paul Lilienfeld

Com: Isabelle Adjani, Denis Podalydès, Yann Collette
Género: Drama
Classificação: M/16
Origem: BEL/FRA
Ano: 2008
Cores, 87 min

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Sonia Bergerac (Isabelle Adjani) é uma professora de meia-idade cujo divórcio a deixou numa depressão profunda, encontrando algum controlo nos fortes medicamentos que toma diariamente. Ela é, literalmente, uma mulher à beira de um colapso nervoso. Depois de anos a lidar com os problemas de indisciplina dos seus "difíceis" alunos, maioritariamente filhos de emigrantes muçulmanos, e de obedecer às regras pouco comuns do director da escola, decide quebrar uma das regras que não permite o uso de saia na sala de aulas. Para além da reacção pouco amistosa por parte dos seus alunos, encontra uma arma na mochila de um deles acabando por ferir acidentalmente um outro numa perna. Sem saber o que fazer, torna toda a turma como refém...
Produzido pelo canal francês ARTE, um drama social dentro da sala de aulas, desta vez realizado por Jean-Claude Lillienfeld.

1 Junho - 3ª feira - Dia Mundial da Criança - 18 horas - Artur e a Vingança de Maltazard


Título original: Arthur et la vengeance de Maltazard

De: Luc Besson

Com: Snoop Doggy Dogg (Voz), Asa Butterfield (Voz), Mia Farrow (Voz), Freddie Highmore (Voz)
Género: Animação, Aventura
Classificação: M/6
Origem: FRA
Ano: 2009
Cores, 93 min


Depois de longos meses de espera, chega finalmente o fim do décimo ciclo da Lua. Artur pode então regressar ao mundo dos Minimeus e reencontrar Selénia, a princesa que ele nunca conseguiu esquecer. No pequeníssimo mundo subterrâneo, todos se aprontam para o receber com uma enorme festa de boas-vindas. Mas tudo se complica quando o pai de Artur decide que as férias do filho em casa dos avós terminaram, enviando uma mensagem de que chegará nesse mesmo dia para o levar de volta.
Quando está prestes a partir com o pai, uma estranha aranha entrega-lhe um grão de arroz com um pedido de ajuda de Selénia. Nesse momento ele compreende que, independentemente de tudo o resto, terá de regressar à vila dos Minimeus e ajudar a salvar o seu pequeno mundo...
O filme sequela de "Artur e os Minimeus", também realizado pelo francês Luc Bresson.


Junho 2010 - Cartaz


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28 Maio - SIGNIFICADO a música portuguesa se gostasse dela própria + B Fachada



Tiago Pereira mostra em Amarante os seus últimos filmes.

SIGNIFICADO
Pode dizer-se que é um “work in progress”. Originalmente pensado e concebido para um “trabalho-encomenda” proposto pela Associação Cultural d’Orfeu, localizada em Águeda, cujos fundadores são 4 irmãos (os irmãos Fernandes) músicos, para celebrar os seus 15 anos de existência.
Este projecto consiste numa recolha/escolha intensiva de testemunhos, sons e canções tradicionais portugueses. Com este legado, Tiago Pereira, resume-se a uma combinação estruturada de questões levantadas sobre a sua evolução e sua cristalização, a sua reinvenção e as suas dúvidas, os seus mitos e as suas interrogações: “como seria a música portuguesa se gostasse dela própria?”. Enfim, podemos ser conduzidos numa viagem à contemporaneidade da música tradicional portuguesa.
Tem a participação de vários músicos, tais como: Vítor Rua, Carlos Guerreiro, os irmãos Fernandes (Luís, Artur, Bitocas e Rogério), Júlio Pereira e, ainda, a artista Joana Vasconcelos.

21 Maio - Invictus


Título original: Invictus

De: Clint Eastwood

Com: Morgan Freeman, Matt Damon, Tony Kgoroge
Género: Drama
Classificação: M/12
Origem: EUA
Ano: 2009
Cores, 134 min

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África do Sul, 1994. Nelson Mandela sai Presidente das primeiras eleições inter-raciais e inicia a árdua missão de sarar as feridas de 42 anos de "apartheid": as suas e as de todo um país.
Com a ajuda de François Pienaar (Matt Damon), capitão da Selecção sul-africana de râguebi, Mandela (Morgan Freeman) inspira um país inteiro, ainda consumido pela divisão entre negros e afrikaners (descendentes dos colonos europeus). Confiante que poderia pôr todos a olhar na mesma direcção, Mandela usa a equipa dos Springboks como símbolo da união nacional, levando-a até à final do Campeonato do Mundo de Râguebi de 1995. É então que, contra todas as probabilidades, África do Sul vence a partida contra a fortíssima formação da Nova Zelândia e torna-se campeã do mundo.
Uma história verídica, realizada por Clint Eastwood, que mostra como a inspiração para algo grandioso pode ser encontrada nas pequenas conquistas de um povo.


Jorge Mourinha in PÚBLICO, 26 de Janeiro de 2010
O desporto favorito dos homens
"Invictus" confirma Clint Eastwood como o último dos clássicos, mesmo que o realizador esteja num piloto automático que já não esperávamos dele
Se Clint Eastwood é - como muitos continuam a vê-lo - o último elo que nos liga a uma era quase perdida do cinema clássico americano, "Invictus" confirma sem problemas essa filiação, pegando no "filme desportivo", rito de passagem e fórmula clássica para muito realizador americano. Eastwood mantém todas as coordenadas dramáticas e inspiracionais do género, mas descentra-o do mero esforço desportivo (e da aposta nos desportos americanos que faz a maior parte dos filmes de género de interesse restrito fora dos EUA) para uma dimensão global e eminentemente política.
Adaptando um livro do jornalista John Carlin, "Invictus" segue o percurso da equipa sul-africana de râguebi na taça do mundo de 1995 e desenha o modo como Nelson Mandela, recém-eleito presidente da África do Sul (Morgan Freeman, discretíssimo), usou a modalidade, até aí identificada como o "desporto dos brancos" por oposição ao futebol, como improvável traço de união de uma nação em recobro das feridas do apartheid. Não faltam aqueles que quiseram ler em "Invictus" um desejo velado para a presidência de Barack Obama (com o qual o Mandela de Freeman, procurando reunificar um país dividido, tem muito em comum), embora se perceba que o que atraiu Eastwood nesta história foi muito mais a ideia da gravidade moral que percorre muito do seu cinema, a imagem clássica do homem que coloca o seu país e o seu ideal à frente de si próprio. E, nesse aspecto, "Invictus" segue uma linhagem bem mais clássica do que até à primeira vista poderia parecer (mais próxima dos "biopics" de estadistas que Hollywood produziu na sua era dourada).
Mas não estaremos a fazer nenhum desfavor ao realizador se dissermos que esta história sobre o perdão e a reconciliação, que Freeman insistiu com Eastwood para ser ele a realizar, corre um tudo nada num "piloto automático" que, nesta altura, já não esperávamos dele (as câmaras lentas e as baladonas de isqueiro na banda-sonora eram coisas dispensáveis), nem se dissermos que o sentimos um tudo nada constrangido pela seriedade do assunto, como se não se conseguisse libertar do peso da "história real" que lhe está na origem. Nada que a segurança e a sobriedade a que Eastwood nos habituou não ultrapasse (e não é certo que outro realizador resolvesse melhor estes problemas), mas fica a sensação de um filme que cumpre tudo o que lhe é pedido mas falha o ensaio no último minuto.

14 Maio - Um Homem Singular


Título original: A Single Man

De: Tom Ford

Com: Colin Firth, Julianne Moore, Nicholas Hoult, Matthew Goode
Género: Drama
Classificação: M/16
Origem: EUA
Ano: 2009
Cores, 101 min

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Los Angeles, 30 de Novembro de 1962. Depois da trágica morte de Jim (Matthew Goode), seu companheiro dos últimos 16 anos, nada parece fazer sentido para o professor George Falconer (Colin Firth). Tudo lhe relembra a felicidade perdida e nem a sua velha amiga Charley (Juliane Moore) o consegue tirar do torpor em que vive nos últimos meses. Mas um encontro com Kenny (Nicholas Hoult), um jovem aluno das suas aulas de inglês que parece seguir os seus passos durante todo um dia, vai dar a George uma nova perspectiva e fazer renascer a vontade de começar tudo de novo...
Baseado no livro "A Single Man" de Christopher Isherwood, marca a estreia na realização do estilista americano Tom Ford.
Foi o filme de encerramento do 66º Festival de Veneza, com Colin Firth a ganhar o prémio de melhor actor (nomeado para o Óscar de melhor actor).


Jorge Mourinha in PÚBLICO, 18 de Fevereiro de 2010
Um homem, só
Colin Firth é um homem para quem a vida já não faz sentido na extraordinária estreia na realização do estilista Tom Ford. É, dizemos nós, uma obra-prima
Era uma vez um professor de literatura numa universidade californiana, que vive uma sexta-feira normal como se fosse o último dia da sua vida. E, por vontade dele, é-o - porque, desde que o seu amor morreu num acidente de carro, já nada mais faz sentido. Este, então, é o percurso do último dia da vida de George Falconer, cansado de não mais ter ao seu lado quem esperava que o abraçasse e partilhasse a sua vida até ao fim. Uma espécie de "imenso adeus" a uma vida aparentemente encantada - um emprego confortável, um estatuto invejável, uma casa perfeita à esquina do Pacífico, mas que nada significam quando se deve sofrê-los sozinhos, quando se está cansado de procurar pensos rápidos descartáveis que só preenchem o enorme vazio que a morte deixou até a cola desaparecer.
Sempre que há um "penso rápido", um momento de empatia com o mundo, um momento em que George faz uma ligação emocional com alguém, a paleta de cores de Tom Ford explode num voluptuoso Technicolor saído da Hollywood dos anos 1950 e 1960, como convém a uma história que se passa em 1962, no pleno centro do sonho americano do pós-guerra. Mas é, literalmente, sol de pouca dura - tal como a noite se sucede ao dia, também a fotografia meticulosamente precisa de Eduard Grau regressa à dessaturação quase sépia que reflecte a tristeza indizível de um homem a quem foi arrancado, nas palavras de Chico Buarque, um "pedaço de mim".
Que esse "pedaço de mim" seja outro homem, que "Um Homem Singular" adapte um texto fundador da literatura gay assinado por Christopher Isherwood, apenas empresta uma dimensão adicional a um filme que fala de solidão, de luto, de esperança, de vida, de morte, de amor sem nunca os embrulhar em tiques ou truques de militância - porque a emoção central é universal, porque todos nós temos de aprender a enfrentar a perda de um ente querido, marido, mulher, amante, irmã, irmão, pai, mãe.
Há dois milagres no primeiro filme de Tom Ford. O primeiro é esse - conseguir encontrar o universal numa experiência singular, conseguir uma dificílima tradução em imagens de emoções profundas que já todos sentimos mas que nem sempre conseguimos articular.
E o segundo é inseparável do primeiro - é o facto de "Um Homem Singular" ser uma das estreias mais fulgurantes que vemos em muitos anos, de um controle formal e de uma sensibilidade que muitos cineastas mais experientes dificilmente ou raramente atingem. Tanto mais espantosa quanto Ford, um dos mais lendários estilistas da moda dos anos 1990, não tinha nenhuma experiência cinematográfica e não apenas prova saber muito bem o que está a fazer como arranca de Colin Firth, actor de cujo talento nunca se duvida, uma daquelas interpretações arrasadoras para entrar nos livros de referência. Todo em retenção e discrição, sem nunca cair nos opostos do excesso e da ausência, do minimalismo e do histrionismo, Firth ancora com uma segurança quase ofensiva um filme que podia muito rapidamente cair no exercício de estilo estéril.
Mas era preciso que Ford deixasse que isso acontecesse - e rapidamente se percebe que o que interessa ao estilista é contar uma história em vez de fazer pose. Encontrou o elenco ideal para isso (porque não é só Firth que é magnífico, mas também Julianne Moore, divina como há muito não a víamos, ou Matthew Goode) e, no processo, fez uma pequena obra-prima. "Um Homem Singular" pode bem ser um caso único - mas, se o fôr, ainda bem que existe.


Críticas

Relatório e Contas 2009


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8 Maio (sábado) - Extensão IndieLisboa: My childhood + My ain' folk


My childhood, de Bill Douglas
Grã -Bretanha
1972
PB, 45 min




My ain’ folk, de Bill Douglas
Grã -Bretanha
1973
PB, 55 min


O escocês Bill Douglas (1934 -91) realizou nos anos 70 uma obra breve e de grande qualidade artística. Realizados a preto e branco, num estilo sóbrio e intenso, em que alguns viram ecos de Bresson, MY CHILDHOOD (que recebeu o Leão de Prata no Festival de Veneza) e MY AIN FOLK formam as duas primeiras partes do que viria a ser uma trilogia autobiográfica sobre a sua infância e adolescência. Douglas fez questão de usar os mesmos actores para retraçar a sua infância num meio proletário, na Grã -Bretanha dos anos 40. São dois filmes austeros do ponto de vista formal, mas também de grande força emocional, na sua evocação sem sentimentalismos de uma infância num mundo hostil. Um importante realizador a (re)descobrir.

Mais informação.

7 Maio - Extensão do IndieLisboa: La Mujer sin pinao + Cocoon (Grande Prémio Curtas-Metragens)


Cocoon, de Till Kleinert
Alemanha, França
Ano: 2009
Cores, 7 min


Uma história de crescimento filmada com enorme intimidade, que trará à memória a importância de um novo corte de cabelo numa adolescente.



La Mujer sin Piano, de Javier Rebollo
Espanha, França
2009
Cores, 95 min


Retrato de uma dona-de-casa anónima no princípio do século XXI, em Madrid. A protagonista (Carmen Machi) é casada e para ela nada se compara à satisfação íntima de ver servido um prato fumegante a horas, ao almoço. O filme mostra 24 horas do seu quotidiano doméstico, profissional e sexual (num dia muito especial, o de 16 de Março de 2003, quando o então primeiro-ministro espanhol José María Aznar posou para a fotografia nas Lajes, junto com George W. Bush, Tony Blair e, claro, Durão Barroso). Carmen foge desta vida uma noite e o filme conta o que acontece nesse período de tempo: alguns dirão que reflecte a alienação de uma dona-de-casa, mas no fundo do que esta história trata da reinvenção de uma mulher à beira da menopausa, que não tem amigos nem vida social. Dedicou a sua vida à família, não se acha bonita, detesta o seu próprio cabelo… e desliza na estranheza da noite. Porque quando cai a noite, nasce um novo mundo divertido, obscuro e absurdo. A segunda longa-metragem de Javier Rebollo, cineasta madrileno iconoclasta, é um filme impregnado de melancolia.

Mais informação.

30 Abril - Ágora


Título original: Agora

De: Alejandro Amenábar

Com: Rachel Weisz, Max Minghella, Oscar Isaac
Género: Drama
Classificação: M/12
Origem: Espanha
Ano: 2009
Cores, 126 min

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Egipto, ano 391. Alexandria é parte do império Romano e o Cristianismo torna-se a religião dominante. Quando as revoltas populares chegam à Biblioteca de Alexandria, Hipátia (Rachel Weisz), filósofa e ateísta, luta pela preservação da cultura do Mundo Antigo sem se aperceber que o seu jovem escravo, Davus (Max Minghella), está apaixonado por si. Mas o jovem fica dividido entre o seu amor secreto e a promessa de liberdade em troca da sua aliança aos cristãos.
Um épico sobre o Cristianismo e as suas injustiças, realizado por Alejandro Amenábar ("Os Outros", "Mar Adentro" e "Abre Los Ojos").


Jorge Mourinha in PÚBLICO, 10 de Dezembro de 2009
Ensaio sobre a cegueira
Parece ser um épico histórico quase romântico mas é um ensaio ardiloso sobre a ignorância e o conhecimento
Ao princípio, pensamos ter aterrado numa reinvenção do "peplum"; não, afinal desviamo-nos para os épicos cristãos de bons sentimentos à la "Túnica" e outros "Quo Vadis"; quando damos por nós, entrámos numa história de amor impossível e acabamos numa crítica feroz dos fundamentalismos religiosos, num hino à tolerância e à razão, num ensaio sobre a ignorância e o conhecimento. E o melhor de tudo é que só no final das duas horas de projecção é que temos o quadro todo à frente - explica-se porque é que filmes como "Ágora" não se encontram ali à esquina nem enquanto o diabo esfrega o olho, filmes que resistem teimosamente a explicar ao que vêm nos primeiros dez minutos e que se vão revelando aos poucos, como quem não quer a coisa. Calha bem, a figura central do filme de Alejandro Amenábar (cinco anos depois de "Mar Adentro") é a elipse - a elipse que define a órbita da Terra em volta do Sol que a filósofa Hipátia busca durante todo o filme, numa sede insaciável de conhecimento, mas que está lá desde o primeiro diálogo com os alunos na sua sala de aulas na biblioteca de Alexandria, onde se fala dos temas que norteiam "Ágora" sem realmente falar deles.
Estamos em 391 depois de Cristo, quando o cristianismo se começa a espalhar pela Europa, e Amenábar centra a história no saque da lendária biblioteca de Alexandria e na imparável ascensão ao poder dos cristãos do Médio-Oriente, impondo um intolerante "diktat" que nos faz pensar ora nos talibãs (e outros fundamentalistas religiosos, quaisquer que sejam) ora no Nazismo (e outras crenças de extrema-direita, quaisquer que sejam). Não é por acaso que Amenábar ilustra graficamente o apedrejamento da população judia de Alexandria nem é forçosamente casual que identifiquemos o saque e destruição da biblioteca com a destruição dos budas de Bamyan, no Afeganistão - e é um tanto ou quanto perturbante para aqueles que esqueceram a sua história clássica perceber que já na Antiguidade a intolerância e o preconceito existiam e procuravam derrotar as forças da razão e do conhecimento.
Mas tudo isto é contado através de um improvável triângulo romântico: Hipátia, a filósofa e cientista que abdicou da sua vida e das suas emoções em nome da ciência; Davus, o escravo fascinado pelo conhecimento que, uma vez libertado num novo mundo onde a ciência já não tem o mesmo lugar, se dedica à violência em nome da religião para preencher o vazio; Orestes, o romântico incurável que sempre procurou o compromisso impossível entre a ciência e a religião. E de repente percebemos que, por trás destes amores nunca consumados encontra-se um filme muito mais ardiloso do que parece, que usa a estrutura e a forma do género para criar um épico onde a cabeça e não a acção comanda, e, ao mesmo tempo, para criticar a sua própria estrutura. Um filme sobre a força e o poder e o perigo das ideias, mas sobre o perigo ainda maior de não deixar essas ideias contaminarem-se pela emoção e pela compaixão. Um filme que debate religião, ciência, conhecimento, intolerância pelo meio de uma abordagem clássica ao cinema de género e de grande espectáculo, que Amenábar encena com segurança e uma inteligência que já lhe conhecíamos dos filmes anteriores mas que atinge aqui uma maturidade insuspeita - mesmo que também aqui com uma frieza algo distante, ali com um peso demasiado demonstrativo, pontualmente mesmo com um certo anonimato de funcionário.
A maior fraqueza de "Ágora", aliás, acaba por ser, paradoxalmente, a sua força - o modo como a história parece navegar à vista sem destino nem forma durante a primeira metade do filme sugerem primeiro um cineasta à toa, perdido na sua ambição, mas revelam-se depois uma estratégia delineada que exige uma entrega e uma atenção inabituais nestes dias em que a oferta é descartável e pouco exigente: este é um filme que trata o seu espectador como alguém que pensa. É uma ambição que se saúda, reconhece e se agradece, mesmo que "Ágora" fique um par de furos aquém da obra-prima.

23 Abril - Nas Nuvens


Título original: Up in the Air

De: Jason Reitman

Com: George Clooney, Vera Farmiga, Anna Kendrick
Género: Comédia, Drama
Classificação: M/12
Origem: EUA
Ano: 2009
Cores, 110 min


Ryan Bingham (George Clooney) é um quarentão empedernido, misantropo e com fobia ao compromisso. A sua especialidade é despedir pessoas, reformulando as necessidades empresariais com vista à maximização de recursos. Por isso, está sempre a viajar em trabalho (com uma bagagem minimalista que leva para todo o lado), facto que aproveita para saciar a sua compulsão em coleccionar milhas aéreas. Porém, quando está prestes a atingir o objectivo das dez milhões de milhas como cliente regular, o patrão decide aplicar a Ryan o seu próprio conceito de maximização de recursos e mudar o método de trabalho, fazendo-o cumprir as suas funções através de vídeo-conferência.
A ideia de estar confinado a um escritório seria a mais aterradora de toda a sua carreira, não fosse algo ter mudado: Ryan acabou de conhecer Alex Goran (Vera Farmiga) e agora a perspectiva de assentar e começar uma família parece muito menos assustadora.
Baseado no romance homónimo de Walter Kirn, é a terceira longa-metragem de Jason Reitman, depois de "Obrigado por Fumar" (2005) e "Juno" (2008), foi nomeado para seis das principais categorias dos Globos de Ouro: melhores filme dramático, realizador, argumento, actor dramático (Clooney) e duas nomeações na categoria de melhor actriz secundária (Vera Farmiga e Anna Kendrick).


Jorge Mourinha in PÚBLICO, 21 de Janeiro de 2010
Primeira classe
George Clooney é mais do que só charme num belíssimo filme sobre a ilusão das aparências
George Clooney podia não ter feito mais nada na sua vida que bastaria "Nas Nuvens" para perceber como, por trás da fachada de solteirão "bon-vivant" e sedutor, há um actor extraordinariamente inteligente a trabalhar. Porque o filme de Jason Reitman é precisamente sobre a ilusão das aparências, como fica explicado quando a personagem de Clooney, Ryan Bingham, dá por si a transportar nas suas viagens profissionais um recorte em cartão da irmã e do noivo para fotografar por onde for passando - eles não têm dinheiro para viajar e as fotografias tornam-se numa espécie de memória daquilo que se queria fazer mas nunca se fez.
Mas a única vida de cartão que há ali é a dele, Ryan Bingham, que foi a todos os sítios onde a irmã e o noivo gostariam de ir (e alguns onde eles não quereriam ter ido) e não trouxe nenhuma memória, nenhuma imagem, nenhuma prova que esteve lá ou que desfrutou da experiência. Bingham é executivo de uma empresa de "transição" (eufemismo para "despedimentos") que passa 320 dias em cada ano "na estrada", a viajar de empresa em empresa para licenciar empregados com um toque pessoal. Como o Robert de Niro do "Heat" de Michael Mann, não possui absolutamente nada que não possa caber na sua bagagem de cabina, e dá palestras motivacionais sobre a bagagem que transportamos. E não tem nada a que se agarrar quando surge uma nova executiva que tem uma ideia que vai revolucionar o mercado das empresas de "transição" e que o pode forçar a abdicar da sua vida literalmente "no ar": despedir à distância, via novas tecnologias.
"Nas Nuvens" é, já se percebeu, filme cheio de ironias contemporâneas: história de um especialista em despedimentos que se vê à beira de ser ele próprio despedido, rodada e estreada em plena crise económica (alguns dos empregados que Bingham/Clooney despede são, eles próprios, desempregados); história de um homem que prega abandonar a bagagem sem perceber que nunca se desfez da sua; história de um homem que se deixou seduzir pela própria imagem que projecta. Filme que se resume numa única frase que parece ser atirada assim meio ao acaso mas que, vai-se a ver, é muito mais central do que parece: "Sou como a minha mãe. Uso estereótipos porque é mais rápido."
"Nas Nuvens" é um filme sobre tudo o que se esconde por trás dos estereótipos e que é tudo aquilo que dá sentido e sabor e personalidade a uma vida que por vezes parece não ter rei nem roque, sobre um homem que dá por si prisioneiro do estereótipo que ele próprio criou. É, em grande parte, aí que o terceiro filme de Jason Reitman, depois de (e muito superior a) "Obrigado por Fumar" (2006) e "Juno" (2007), adaptado de um romance de Walter Kirn, se ganha: no perfeito ajuste entre actor e personagem, na inteligência com que Clooney modula infinitesimalmente confiança e vulnerabilidade na proporção exacta para tudo fazer sentido. É mais, mas muito mais, difícil do que parece, sobretudo porque não parece absolutamente nada difícil. E é mais uma ironia que "Nas Nuvens" vai inserindo subrepticiamente, ao transformar-se lentamente de alta comédia sofisticada clássica, à medida do poder de sedução de Clooney-vedeta, numa espécie de meditação amarga, quase desesperada, sobre o que significa ser "um profissional", ter "uma carreira" ou "uma ambição", revelando as insuspeitas reservas de talento de Clooney-actor. É uma fita sobre a ilusão das aparências, sobre a sedução de viver nas nuvens - e do choque que pode ser quando o avião aterra. É, já se percebeu, um grandíssimo filme, prova que ainda é possível a Hollywood fazer cinema de primeira classe na melhor linhagem clássica.

16 Abril - Arena + Taking Woodstock


Título original: Taking Woodstock

De: Ang Lee

Com: Henry Goodman, Edward Hibbert, Imelda Staunton
Género: Comédia, Musical
Classificação: M/16
Origem: EUA
Ano: 2009
Cores, 110 min


EUA, finais dos anos 60. Elliot Tiber (Jake Teichberg) vê-se em maus lençóis quando percebe que os seus pais estão à beira da falência e prestes a perderem o velho motel da família. Quando sabe que, numa cidade próxima, os habitantes fazem de tudo para frustrar os planos dos organizadores de um certo festival hippie, encontra aí a grande solução para o seu problema. Elliot decide arrendar para o evento o enorme espaço junto ao minúsculo motel. O que ele não poderia imaginar é que aquela decisão o iria tornar parte da história e que a sua pequena cidade se tornaria no centro do universo para as mais de 500 mil pessoas presentes. E depois, para o mundo...
Realizado por Ang Lee, o filme recria os factos reais que permitiram a realização do festival de Woodstock em 1969.

A abrir a sessão, "Arena", curta-metragem de João Salaviza centrada em Mauro, um rapaz que vive em prisão domiciliária, confinado a um espaço e ao tempo da sua pena. "Arena" ganhou a Palma de Ouro para a curta-metragem no Festival de Cannes de 2009.




João Salaviza explica "Arena" em seis passos (vídeo)

Luís Miguel Oliveira in PÚBLICO, 16 de Setembro de 2009
Sonho hippie
Um Woodstock de "sonho", muito plastificado (até a lama parece limpinha) e muito estereotipado.
Depois de um interlúdio em solo natal ("Lust, Caution", rodado em Taiwan) Ang Lee voltou aos EUA para o seu primeiro filme americano pós-"Brokeback Mountain". O título não engana, "Taking Woodstock" refere-se mesmo ao apogeu "peace & love" dos "sixties" e ao concerto de que agora se assinala o quadragésimo aniversário. O argumento baseia-se no livro autobiográfico de Elliot Tiber, que em 1969 era um jovem e empreendedor filho de estalajadeiros da zona de Woodstock, e foi um elemento importante na cadeia organizativa do festival, mesmo sem perceber bem onde estava metido. O Tiber do filme, pelo menos na interpretação de Demetri Martin, atravessa "Taking Woodstock" como uma silhueta, no fundo, e apesar da sua acção é uma testemunha daquela avalanche de "contracultura" que ele observa com estranheza. Há um lado "sirkiano" em Ang Lee, na maneira como olha para os americanos e para as suas "imitações da vida", e sem dúvida que esse lado está presente em "Taking Woodstock", reflectido num ambiente e num acontecimento muito específicos. Até por isso, não custa ver no protagonista e na sua estranheza (muito "clean": é relutantemente que, perto do fim, lá experimenta a sua primeira pastilha de LSD) uma projecção do cineasta, um asiático (que tinha 15 anos em 1969) a filmar a sua distância, não importa quão simpática, para com os "sixties" americanos. A coisa mais interessante está mesmo aí, no corpo estranho que é Tiber (assim como boa parte dos colaboradores locais) dentro daquela agitação toda, e na maneira "lateral" como o festival vai sendo seguido - como um rumor, um eco, música ouvida ao longe (Janis Joplin, por exemplo), que nunca se chega a materializar. E quando se vê o palco, sempre de longe, é como "coisa sonhada", pontinhos de luz colorida recortados no céu nocturno, feérie irreal. Não por acaso, a seguir vem a cena do LSD.
Lee precisava de ser mais "sirkiano" (e ter também um lado vindo, digamos, de Tati) para ir além disto. A procura da reconstituição mimética (a peruca de Michael Lang, o organizador-mor, é inacreditável) soa mais a falso do que ao realismo desejado, mas OK, isto é mais teatro do que outra coisa. Só que o artifício se esgota em si próprio, numa agremiação de "tipos" sem profundidade (o "travesti" de Liev Schreiber, o traumatizado veterano do Vietname a cargo de Emile Hirsch), bonecos da contracultura, "marionetas de época" - se em mais do que um sentido Woodstock foi a sua própria caricatura (basta ver o documentário de Michael Wadleigh), Ang Lee simplifica-a, fazendo um "cartoon", um desenho animado. Acrítico (é o "fenómeno") e edificante, propriamente beato, ou não fosse, no fim de contas, mera rima para o processo "libertador" do protagonista. Consciente do seu Woodstock de "sonho", muito plastificado (até a lama parece limpinha) e muito estereotipado (aquele casal "hippie" da cena do LSD...), Ang Lee põe no final Michael Lang a falar do seu projecto seguinte, um festival na California com os Rolling Stones, obviamente Altamont. Ou alter-ego, o alter-ego assassino de Woodstock, a expressão da densidade e das contradições dos "sixties" americanos que aqui Ang Lee prefere ignorar em favor de uma visão beatífica.

9 Abril - O Laço Branco


Título original: Das weisse Band

De: Michael Haneke

Com: Christian Friedel, Ernst Jacobi, Leonie Benesch
Género: Drama
Classificação: M/16
Origem: Alemanha/Áustria/França
Ano: 2009
Preto e branco, 144 min


A acção decorre durante os 15 meses que precedem a I Guerra Mundial. A história é contada por um narrador que, tendo presenciado alguns dos factos, tenta encontrar fundamentos e justificações para os anos posteriores da História do seu país.
Numa aldeia remota, no Norte da Alemanha, vários incidentes vão retirar os seus habitantes da calma monotonia a que se habituaram. Esses eventos, de grande violência, parecem ser rituais punitivos justificados pela fervorosa religião protestante. Até que o professor da aldeia (Christian Friedel) começa a tentar perceber o terrível segredo por detrás de tudo...
Filmado a preto e branco, é, segundo as próprias palavras de Michael Heneke, um filme sobre "a origem de todo tipo de terrorismo, seja ele de natureza política ou religiosa".
Foi o grande vencedor da Palma de Ouro na 62.ª edição do Festival de Cannes e é o candidato alemão para o Óscar de melhor filme estrangeiro.


Jorge Mourinha in PÚBLICO, 13 de Janeiro de 2010
Em nome dos filhos
A Palma de Ouro em Cannes 2009 é uma alegoria rigorosa, ascética, que fala da culpa com um virtuosismo formal quase ofensivo
Se há um cineasta europeu contemporâneo que temos tido a oportunidade (rara hoje em dia) de acompanhar continuamente, esse cineasta é o austríaco Michael Haneke - desde as "Brincadeiras Perigosas" originais (1997) que o revelaram internacionalmente, toda a sua obra chegou às nossas salas, o que é tanto mais peculiar quanto se trata de um dos autores menos unânimes e mais divisivos da actualidade. "O Laço Branco", Palma de Ouro em Cannes 2009, não é excepção à regra - Haneke continua a perseguir os mesmos temas de sempre com os mesmos métodos clínicos e austeros de sempre, embora aqui com uma diferença de base por comparação com os seus filmes anteriores. Trata-se de um filme de época, ambientado na Alemanha rural nos meses anteriores ao eclodir da I Guerra, e essa transposição para o passado parece permitir ao espectador um outro distanciamento. E tal como em "Nada a Esconder" (2004), há um semblante de género: o fio condutor da história é uma espécie de mistério policial, à volta de uma série de incidentes estranhos que perturbam uma pequena aldeia alemã.
Ou seja: e se "O Laço Branco", que começou vida como uma ideia para uma mini-série televisiva e acabou por ser feito para cinema, confirmasse definitivamente Haneke como um cineasta rigoroso e inteligente, cujos evidentes talentos de contador e organizador tivessem sido obscurecidos pelas estratégias narrativas provocadoras dos seus filmes? Sobretudo num filme onde a destilação precisa e segura, quase virtuosa, das suas "marcas registadas" dentro de um universo mais acessível impõe aqui um outro respeito, força uma outra atenção?
É, no entanto, não contar com a típica perversidade Hanekiana. Apesar das inclemências das duas "Brincadeiras Perigosas" (1997 e 2007) ou da "Pianista" (2001), nunca o seu cinema foi tão teatro da crueldade como em "O Laço Branco" - e a expressão "teatro" é perfeitamente adequada a um filme que denuncia o teatro social de uma comunidade onde os códigos feudais patriarcais ainda resistem e onde a liberdade pessoal de nada conta face à lei do pai ou de Deus (no caso, vai dar ao mesmo, porque aqui o pai é Deus, como explica a personagem do pastor).
Toda a gente neste filme representa um papel dentro de uma estrutura rígida onde até os pecados dos pais parecem estar predestinados - e isso leva-nos ao tema da culpa, que Haneke explora elegantemente através da sua elisão. Numa comunidade temente a Deus e às leis divinas, a culpa é impensável porque isso implicaria que ninguém é quem diz ser e que todos têm algo a esconder - e, contudo, a própria paz de Eichwald depende de ninguém ter nada a esconder. Tal como as video-cassetes de "Nada a Esconder" serviam como impulso revelador, os misteriosos incidentes de Eichwald trazem à superfície uma verdade que todos reprimem ou escondem mas que ninguém confessa ou assume.
É da culpa do nazismo que persegue a memória alemã e austríaca que Haneke fala? Provavelmente - mas isso é fixar uma interpretação que o realizador, que gosta de lançar enigmas mas não de desvendar as respostas, dificilmente aceitaria como única ou exclusiva. O que é certo é que é de pais e filhos que ele fala, do modo como os pecados ou as graças dos pais marcam os homens e mulheres que os seus filhos e filhas virão a ser. E pelo meio das inferências, elipses, sugestões e possibilidades que o filme lança, a única certeza é que o "ontem" de Haneke tem muito a ver com o "hoje" em que vivemos, é um espelho distorcido que o austríaco levanta com o seu ar rígido e professoral. À medida que os mistérios de Eichwald se vão adensando, que a crueldade dos adultos e das crianças se vai revelando, o austríaco sublinha por empatia as semelhanças desta comunidadezinha com o mundo em que vivemos, o modo como a história e o contexto tecem laços e teias de causalidade no que pode não passar de coincidência. Fá-lo num rigoroso preto e branco de um ascetismo quase calvinista, subvertendo continuamente os códigos e as regras do género que respeita à superfície.
"O Laço Branco" é um filme que, tal como as suas personagens, não é bem aquilo que parece ser. Mas isso, vindo de Michael Haneke, já não devia surpreender ninguém - tal como não surpreenderá ninguém que este seja, muito provavelmente, o seu melhor filme de sempre.


Dossier de imprensa

1 Abril (5ª-feira) - Estrela cintilante


Título original: Bright Star

De: Jane Campion

Com: Paul Schneider, Thomas Sangster, Abbie Cornish, Kerry Fox
Género: Drama
Classificação: M/12
Origem: GB
Ano: 2009
Cores, 120 min
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Em 1818, o jovem poeta inglês John Keats (Ben Whishaw) apaixona-se pela sua vizinha Fanny Brawne (Abbie Cornish) sem imaginar como isso irá mudar a sua vida. Apesar de terem muito pouco em comum, - ele um poeta romântico, ela uma estudante de moda pouco dada à literatura - a grave doença do irmão mais novo de John aproxima-os. Essa amizade, que rapidamente se transforma num amor sem limites, tendo a poesia como linguagem, acaba por tornar-se uma obsessão difícil de aceitar por todos os que os rodeiam. Mas, apesar de todas as contrariedades, só a doença e morte prematura de John Keats terá o poder de os separar.
Um filme biográfico, realizado por Jane Campinon, cujo título original se inspira em Bright Star: Love Letters and Poems of John Keats to Fanny Brawne, uma colectânea de cartas de amor e poemas do próprio escritor dedicados ao amor da sua vida.


Jorge Mourinha in PÚBLICO, 8 de Janeiro de 2010
A defesa do poeta
O novo filme de Jane Campion finta todas as expectativas do filme de época para contar uma arrebatada paixão moderna despoletada pelo poder da palavra
Um filme de sucesso pode fazer muito mal a um realizador que não lhe está habituado - no caso da neo-zelandesa Jane Campion, o problema não é tanto responsabilidade dela mas sim das expectativas que o triunfo improvável de "O Piano" (1993) colocaram nos ombros de uma cineasta que segue uma musa muito pessoal e ainda mais peculiar. De tal modo que os olhares mais mercantilistas olharam para "Retrato de uma Senhora" (1996), "Fumo Sagrado" (1999) e "Atracção Perigosa" (2003) como "suicídio comercial" a longo prazo - esquecendo o modo como cada um desses três filmes se inscrevia com naturalidade no percurso de uma realizadora mais atenta às correntes subterrâneas das suas personagens do que à recepção comercial de filmes que não foram pensados para serem "blockbusters".
Isto tudo para dizer que, como é habitual em Campion, "Estrela Cintilante", primeiro grande (que dizemos? Grandíssimo, extraordinário) filme que estreia em 2010, vai começar por ser visto como uma daquelas biografias históricas muito britânicas de irrepreensível reconstituição de época. Ou não contasse a história verídica (mas livremente romanceada por Campion a partir da pesquisa realizada por Andrew Motion, biógrafo do poeta) do romance entre John Keats, um dos grandes poetas românticos do princípio do século XIX, e Fanny Brawne, a sua jovem e arrebatada vizinha. Romântico é a palavra certa para descrever o amor de Keats e Fanny, noivado que a morte prematura do poeta impediu de consumar, mas se à superfície o filme cumpre muitas das figuras obrigatórias do género, um simples olhar por baixo do tapete descobre mais um daqueles "retratos de senhora" em que a realizadora é perita - uma mulher imperiosa e insegura ao mesmo tempo, à frente do seu tempo, moderna, determinada. A Fanny de Abbie Cornish é uma jovem que pode não ter verdadeiramente experiência de vida, mas entrevê nas palavras que Keats escreve a possibilidade de uma emoção de tal modo transcendente que raia o sagrado.
E é disso que "Estrela Cintilante" fala: do poder quase sagrado da palavra (escrita ou falada) para nos abrir portas, caminhos, janelas que nos mostram quem somos, quem podemos ser, quem queremos ser; da palavra poética como ponte espiritual entre as pessoas; do amor como experiência sensorial de uma transcendência inexplicável mas que, em condições ideias de temperatura e pressão, consegue ser traduzida em palavras. E, para melhor o traduzir para os seus espectadores, Campion filma tudo isto no âmbito de um peculiar triângulo amoroso (o terceiro vértice é Charles Brown, amigo, anfitrião e auto-nomeado protector de Keats com quem Fanny se pega desde o primeiro encontro), como se fosse um idílio pastoral literalmente de câmara que a saúde frágil de Keats confina a salas, salões, quartos. A natureza, em "Estrela Cintilante" é uma Natureza idealizada, que Keats regista na sua memória num dos espaçados planos de exteriores do filme e depois reconstitui na sua poesia ornamentada à qual a voz de Ben Whishaw dá uma vida extraordinária (à atenção da distribuidora: é inexplicável e lamentável que o poema lido por Whishaw ao longo do genérico final não esteja legendado).
Retrato assombroso de um romance moderno antes do seu tempo, "Estrela Cintilante" é um poema em cinema. E o primeiro grande filme de 2010

Abril 2010 - Cartaz


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12 Março - Julie e Júlia


Título original: Julie & Julia

De: Nora Ephron

Com: Meryl Streep, Amy Adams, Stanley Tucci
Género: Biografia, Comédia Romântica
Classificação: M/12
Origem: EUA
Ano: 2009
Cores, 123 min
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Nos finais dos anos 40, Julia Child (Meryl Streep) acompanha o marido a Paris, onde ele foi nomeado adido cultural dos EUA. A sua paixão pela cultura francesa culmina com a edição de um livro de gastronomia chamado "Mastering the Art of French Cooking", que se torna um fenómeno de popularidade no seu país, alterando para sempre a culinária americana.
Décadas mais tarde, em Nova Iorque, Julie Powell (Amy Adams) está em crise: aos 30 anos, sente que não alcançou nenhum dos supostos patamares de realização e que não consegue dar um rumo à sua vida medíocre. Um dia, em casa da sua mãe, depara-se com o famoso livro de Julia Child e, com o total apoio do marido, decide iniciar o projecto Julie/Julia: num ano, vai testar as 524 receitas e publicar o resultado num blogue que se revela um sucesso colossal.
Inspirado no livro autobiográfico de Julie Powell, sobre duas mulheres que, embora separadas no tempo, encontraram na arte culinária uma forma de dar sentido às suas vidas.


Jorge Mourinha in PÚBLICO, 19 de Novembro de 2009
O girl power do fogão
A cozinha como fonte da realização pessoal da mulher moderna - numa alta comédia transportada por duas actrizes de eleição.
Como se não chegasse uma, "Julie e Julia" baseia-se em duas histórias verídicas e, sabendo nós como Hollywood adora histórias verídicas (que muitas vezes deixam de o ser assim que chegam ao écrã...), isso deixa logo a pulga atrás da orelha. Uma é a história de Julia Child, espécie de Maria de Lourdes Modesto que revelou à América, nas décadas de 1950 e 1960, a riqueza da cozinha francesa pela qual se apaixonara em Paris após a II Guerra. A outra é a história de Julie Powell, uma trintona nova-iorquina que, em 2002, frustrada com o modo como a sua vida não seguira o curso que ela esperava, embarca no projecto meio insane de cozinhar, ao longo de um ano, as 500 receitas que Child incluira no seu livro de culinária francesa.
Improvavelmente, do cruzamento entre as duas histórias Nora Ephron (a escritora que reinventou a comédia romântica para os anos 1990 como argumentista de "Um Amor Inevitável", 1989, e autora de "Sintonia do Amor", 1993, e "Você Tem uma Mensagem", 1998) tira uma elegantíssima alta comédia sobre duas mulheres que nunca se conheceram nem nunca se cruzaram mas que se encontraram a si próprias do mesmo modo - através da culinária. O truque (e é mais engenhoso do que parece) é o de usar precisamente a divisão da casa à qual as mulheres foram relegadas durante anos como base do seu triunfo e da sua realização pessoal - de "escrava do fogão" a "girl power" através do poder da manteiga e do refogado. Melhor ainda: não estamos a falar de mulheres desfavorecidas (Child era casada com um diplomata, Powell tinha uma vida de classe média, ambas estão perdidamente apaixonadas pelos maridos) e isso é também refrescante - sobretudo porque o objectivo de Child ao escrever o seu livro era o de provar que o requinte da boa comida estava ao alcance da dona de casa média, e o filme explora sabiamente essa "normalidade" tantas vezes maltratada pelo cinema como banal e desinteressante. Como quem diz: sim, as pessoas normais não têm nada de excepcional, e qual é o problema?
"Julie e Julia" torna-se, assim, numa deliciosa subversão dos cânones feministas ao usar, com clássica e discreta elegância, a cozinha como fonte da realização pessoal da mulher moderna (tanto Julia como Julie encontram na partilha das suas descobertas culinárias aquilo que lhes falta para se sentirem completas, mesmo que isso implique ter de assassinar lagostas a sangue-frio), mas sem reduzir as personagens a meras fachadas que apenas existem para a cozinha. É óbvio que ajuda, e muito, ter duas actrizes do calibre de Amy Adams e, sobretudo, Meryl Streep, a quem a comédia está a ficar cada vez melhor (a sua Julia Child é uma criação portentosa para juntar à lista) - e também é verdade que ninguém pensaria em considerar "Julie e Julia" uma obra-prima (para isso, seria preciso mais de substância, até porque há momentos em que o paralelo Julie/Julia a 50 anos de distância é forçado). Mas é tão raro ver uma boa alta comédia hoje, ainda por cima divertida, inteligente, impecavelmente interpretada, que esta quase faz figura de obra-prima. E acabamos por nos esquecer que, em vez de uma, o filme de Nora Ephron se baseia em duas histórias verídicas...


Crónica de Inês Pedrosa

5 Março - O Delator!


Título original: The Informant!

De: Steven Soderbergh

Com: Matt Damon, Lucas McHugh Carroll, Eddie Jemison, Melanie Lynskey
Género: Acção, Comédia
Classificação: M/12
Origem: EUA
Ano: 2009
Cores, 108 min
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Mark Whitacre (Matt Damon) é um empregado do quadro superior na Archer Daniels Midland (ADM), uma empresa da indústria agro-alimentar de grande relevo na economia americana. Convencido que se tornará num herói de uma nobre causa, decide denunciar as práticas ilegais do negócio. Para reunir as provas necessárias, concorda em trabalhar como informador para o FBI e levar um gravador escondido para as reuniões mais importantes.
Mas o comportamento ambíguo de Whitacre torna as coisas cada vez mais complicadas, levando toda a equipa do FBI a tentar decifrar o que é verdade e o que não passa de invenções da sua mente desorganizada.
Uma comédia realizada por Steven Soderbergh, baseada num escândalo que rebentou nos EUA, em 1993, e que deu origem ao romance de Kurt Eichenwald: "The Informant: A True Story".


Vasco Câmara in PÚBLICO, 28 de Outubro de 2009
O Delator!
A leitura de "O Delator" - história, verídica, de Mark Whitacre, bioquímico de uma multinacional que nos anos 90 colaborou com o FBI na denúncia de práticas fraudulentas da sua empresa - como um filme da crise, como filme sobre o fim de um sistema tal como o conhecíamos, foi proposta a Soderbergh (no Festival de Veneza). Que não se riu, mas chamou a atenção deste facto: o projecto é de 2001. Portanto, assumiu, a conexão é acidental, por mais benéfico que seja para o filme dar-se a ver como espelho da doença que alastrou pela "corporate America". Vê-se pelo genérico luxuriante - o tom 70s na banda sonora é da autoria de Marvin Hamlisch - que Soderbergh está em modo de reescrita, e mais interessado nos exercícios de uma personagem, alguém que, veio a descobrir-se, se construiu a si próprio como ficção, envolvendo a sua vida em mentiras, ele próprio agente activo de práticas de fraude.
Whitacre (Matt Damon) era um maníaco-depressivo e Whitacre/Damon é um negativo nada glamouroso dos patifes que povoam muito cinema americano e o cinema do Soderbergh da série Ocean''s. É uma comédia negra fantasista (ao contrário do que aconteceu em "Erin Brokovich", Soderbergh não quis fazer pesquisa junto de quem conheceu uma personagem real...), é um daqueles exercícios "menores" mas enérgicos deste realizador "de segunda" - não é juízo de valor, é a forma como Soderbergh se coloca perante quem chegou antes dele. Note-se o duelo entre imagem e som, a sabotagem permanente, que nos vai dando indícios do mal-estar de uma personagem - agora acrescentamos: e de uma época.


Jorge Mourinha in PÚBLICO, 21 de Outubro de 2009
Contado ninguém acredita
Steven Soderbergh transforma a história verídica de um informador infiltrado numa comédia escarninha sobre a verdade e a mentira.
Graças a Deus que existe Steven Soderbergh para provar que é possível continuar a fazer cinema "desformatado", pessoal, subversivo, invulgar, diferente dentro de uma Hollywood cada vez mais formatada e formulaica.
Depois do díptico dedicado a Che Guevara e de "The Girlfriend Experience" (fita independente com a actriz porno Sasha Gray que ainda não viu estreia entre nós), o autor de "Erin Brockovich", dos três "Ocean's Eleven" e de "O Bom Alemão", assina mais um objecto não identificável, subvencionado pela "major" Warner e com um actor de primeiro plano (Matt Damon, com dez quilos a mais e a confirmar como pode ser grande quando lhe pedem para representar).
Da história verídica de um executivo agroquímico que se ofereceu ao FBI em 1992 como informador infiltrado numa multinacional dos aditivos, que podia ser mais um desses thrillers legais que Hollywood adora fazer à medida das suas estrelas, Soderbergh tira uma surpreendente comédia trágica sobre um mitómano compulsivo, onde nada é o que parece e tudo é filmado com os tiques formais dos dramas políticos e das séries policiais televisivas dos anos 1970. O realizador encena os trabalhos de Mark Whitacre como uma meditação escarninha sobre a verdade e a mentira e sobre o modo como a nossa percepção dos conceitos pode ser manipulada quase sem darmos por isso - meditação que Soderbergh se delicia a filmar como uma demonstração prática dessa teoria.
Inversão sardónica de e homenagem respeitosa a filmes como "Os Homens do Presidente", revista e corrigida pelos truques conceptuais que Soderbergh vai buscar ao Godard clássico e ao non-sense britânico dos "swinging Sixties" (nunca esquecer que o cineasta é um ferrenho de Richard Lester, o homem que primeiro e melhor filmou os Beatles), "O Delator" é mais um dos objectos inclassificáveis disfarçados de filme "mainstream" que o realizador adora atirar para a modorra criativa dos estúdios. Não é uma obra-prima - há momentos em que tudo se resume em demasiado a uma experiência formal (e todos sabemos como o autor de "Sexo, Mentiras e Video" se deixa levar facilmente pelo formalismo), e fica sempre a sensação que Soderbergh está mais interessado no modo como conta a história do que na história que está a contar. Mas nem todos os filmes têm que ser obras-primas - basta apenas que sejam estimulantes. E, nisso, "O Delator" confirma a cem por cento que está aqui o realizador mais vital a trabalhar hoje em Hollywood...

26 Fevereiro - Os Amores de Astrea e de Celadon


Título original: Les Amours d'Astrée et de Céladon

De: Eric Rohmer

Com: Andy Gillet, Stéphanie Crayencour, Cécile Cassel, Véronique Reymond
Género: Drama/Romance
Classificação: M/12
Origem: Espanha/França/Itália
Ano: 2008
Cores, 109 min
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Numa floresta maravilhosa, no tempo dos druidas, o pastor Céladon e a pastora Astrée vivem o seu amor puro. Um dia, enganada por um pretendente, Astrée manda Céladon embora, que, em desespero, se atira ao rio. Mas Céladon é salvo pelas ninfas. Fiel à sua palavra de não reaparecer aos olhos da sua amada, Céladon deve superar várias provas para quebrar a maldição. Louco de amor, é obrigado a disfarçar-se de mulher para conviver com a mulher que ama, mas saberá ele fazer-se reconhecer sem quebrar a sua promessa? "Os Amores de Astrea e de Celadon" é o último filme de Eric Rohmer.

Luís Miguel Oliveira in PÚBLICO, 10 de Julho de 2008
Conto moral de Verão com ninfas e pastores
Estamos tão habituados às estruturas seriais em que se organiza boa parte da obra de Eric Rohmer que quase involuntariamente nos pomos a fazer aproximações entre o que nos aparece "desirmanado". E assim sendo, não resistimos a notar que, desde que terminou, em finais dos anos 90, a série dos "Contos das Quatro Estações", o octogenário cineasta não voltou a pôr os olhos na época contemporânea em que se passa a maior parte dos seus filmes.
De então para cá, só filmes de "época" - "A Inglesa e o Duque" (2001), na Revolução francesa, "Agente Triplo" (2004), na Paris dos anos 30, e agora "Os Amores de Astrea e Celadon", que leva a questão da representação histórica a um pequeno paroxismo irrisório (?).
Trata-se de uma adaptação de uma história escrita em princípios do século XVII por Honoré d''Urfé, ambientada entre os gauleses que, no século V, viviam (dir-se-ia que "irredutivelmente", como na BD) à margem do Império Romano e da sua aculturação. Numa legenda introdutória, Rohmer explica que tentou retratar esses gauleses tal como eles eram imaginados no século XVII - o que cria um "abismo" interessante entre camadas de representação, mas mais ainda funciona como uma caução histórica que é invocada para ser imediatamente atirada fora. O que Rohmer quer é que "Astrea e Celadon" seja a exploração descomplexada de um universo poético-mitológico, e que não o chateiem com a "História".
Um mundo arquetípico composto por pastores, druidas e ninfas, no qual o cineasta não perde um segundo (fora a dita legenda) a esforçar-se para que o espectador "acredite". Com um investimento cenográfico mínimo (décors naturais, adereços quase nenhuns), o único traço "de época" visível é o guarda-roupa envergado pelos actores. Nesta perspectiva não estamos longe dos "filmes de toga" de Straub-Huillet, embora Rohmer procure outro tipo de investimento narrativo (não deixando por isso de preservar uma gota de artificialismo na relação entre actores e personagens - "Astrea e Celadon" também podia ser, e de certa maneira é, um "documentário" sobre uma "troupe" de actores amadores a representarem um texto teatral).
A questão que nos ocupa durante o primeiro quarto de hora é: como é que o universo de preocupações rohmerianas se vai inscrever neste universo despreocupado, feito de passeios bucólicos, festas e canções? Ora isso é a história de Astrea e Celadon. Desconfiada da infidelidade de Celadon (que ele nega terminantemente), Astrea proíbe-o de lhe voltar a aparecer pela frente. Desesperado, Celadon atira-se ao rio. Salvo por um grupo de ninfas que o transportam para o seu castelo, Celadon viverá daí em diante no dilema entre tentações e princípios: ser fiel ao amor por Astrea (que implica ignorar o apelo carnal das ninfas) e, mais difícil ainda, recuperá-lo respeitando a interdição decretada pela rapariga.
Como tantas personagens de tantos filmes de Rohmer, estas vivem obcecadas por questões de ética e moral comportamental, confrontando-as, na mesma intensidade auto-justificativa das personagens dos "Contos Morais" ou das "Comédias e Provérbios", com aquilo que as ameaça (em termos simples, o que se opõe a esse excesso de consciência é o desejo: "o inconsciente é o corpo", como, desconfiado da psicanálise, Rohmer uma vez explicou). As personagens discutem a própria "essência" do amor, e há no filme um cantorbufão- fauno que só lá está para isso, com a mesma profundidade com que o druida expõe as diferenças entre os deuses romanos e os deuses gauleses, numa pequena aula de teologia sobre a impossibilidade de haver mais do que um Deus. Mesmo neste território bucólico e mítico, tudo é razão e tudo é racionável, mas ao mesmo tempo tudo está sempre ameaçado pelo confronto com o mundo - mas que importa isso, se haverá sempre uma nova explicação, e mesmo Astrea chegará ao fim convencida de que foi por intervenção divina (e porque "as palavras fazem coisas") que Celadon, na formidável sequência final, se re-materializou à sua frente?
Como variação vagamente paródica do universo rohmeriano típico, "Os Amores de Astrea e Celadon" é um filme tocado pela graça. Essa graça terá uma explicação, mas para já, desfrutemos.


Dossier de imprensa
Na morte de Éric Rohmer
Crónica de João Bénard da Costa

19 Fevereiro - Sobre água, Quatro curtas-metragens de ficção




Crime Abismo Azul Remorso Físico
Corrente
Arca d`Água
Ciel Etaint

De: Edgar Pêra,Rodrigo Areias, André Gil Mata, e François-Jacques Ossang
Com a presença dos realizadores Rodrigo Areias e André Gil Mata.

"Fazer filmes começa numa obsessão de criação colectiva. É uma vontade que nos ultrapassa. E quando todas as condicionantes financeiras e de meios parecem ser gigantes e impeditivas de levar a cabo essa vontade, a solução é reunir o bando e partir para a luta.

Assim tem sido em ficção, animação e documentário, longas e curtas e assim será ciclicamente até que a necessidade de sobrevivência se sobrepõe à necessidade de criação. Mas rapidamente tudo volta ao normal... a prioridade de fazer filmes prevalece.

Esta sessão agrupa quatro filmes que partilham uma forma de criação e produção semelhante, independentemente do orçamento de cada um destes filmes ser radicalmente diferente. Agrupa duas gerações de realizadores diferentes que partilham as mesmas angústias, a mesma vontade de filmar, de não perder o poder mágico da película, de partilhar visões poéticas do nosso mundo.

Escolhi estes quatro filmes pela convergência temática, e por serem filmes marcantes em mais uma fase do nosso processo enquanto colectivo."
Rodrigo Areias – Bando à Parte.



A curta metragem “Crime Abismo Azul Remorso Físico” constitui a convergência de dois olhares: o do pintor, Amadeo de Souza-Cardoso, e o do realizador, Edgar Pêra. Olhares que aproximam temporalidades distintas.
Não há uma história linear, há fragmentos de histórias, de imagens em movimento, que se entrecruzam e nos interpelam.
Os quadros de Amadeo de Souza-Cardoso são objectos vivos, dinâmicos nos seus volumes, formas e intensidades cromáticas. Neles, o tempo sente-se – tal como o entoar ritmado do coração – e a pintura emerge como hierofania do artista. O tempo move-se quer nas telas, quer nas fotografias e postais esvoaçantes no largo de S. Gonçalo. Foi esta ideia de dinamismo intrínseco à Criação (do Pintor e do Realizador) que Edgar Pêra privilegiou.
O rio Tâmega transporta as memórias passadas e os desejos futuros. Através dele somos introduzidos na família do Pintor, percorremos a corrente (procissão) da fé, viajamos entre as nuvens, saboreamos o vento, lançamo-nos por entre o fogo de artificio. E se a Vida fosse de um colorido irresistível, tal como a esplanada a tela de Amadeo? Mas não é. O princípio de prazer raramente coincide com o princípio da realidade.
Continuamos descendo o rio por entre a denúncia de pesar do Pintor face a um poder económico que sufoca a divulgação da sua obra. Desejo profundo, comum a qualquer mortal, partilhado até pelo Sr. José Emídio! E a corrente serve também para evidenciar o patriotismo epidérmico ou o fanatismo pelo futebol.
Ora musa inspiradora, ora lugar cativo de aspirações transatlânticas, Amarante é uma cidade de dicotomias. E o Tâmega com a sua água, surge como vislumbre natural, com que se inicia e se fecha o filme. Não é só o elemento co-natural ao(s) Amarantino(s). É um misto de Alma Mater - de substância purificadora-, mas também de cárcere das aspirações e do próprio tempo.
Paradoxal?
Tal como a Vida. Tal como o(s) olhar(es) de Vanguarda destes Artistas.
Elsa Cerqueira, Cineclube de Amarante

12 Fevereiro - Homem no arame


Título original: Man on Wire

De: James Marsh

Com: Philippe Petit
Género: Documentário
Classificação: M/12
Origem: EUA/GB
Ano: 2008
Cores, 90 min
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Em 1974, as Torres Gémeas do World Trade Center ainda se elevavam altivas em Nova Iorque e eram os edifícios mais altos do mundo. "Homem no Arame" conta a história da loucura e ousadia de Philippe Petit, que nesse ano cometeu aquele que ficou conhecido como "o crime artístico do século": subiu ao topo das torres ilegalmente, estendeu um cabo entre as duas e caminhou e dançou sobre o arame, sem qualquer protecção ou segurança, até ser preso pela polícia.

Jorge Leitão Ramos in Expresso, Março de 2009
Foi, dizem, o “crime artístico do século” - e este filme dedica-se, paciente e divertidamente, a documentá-lo. “Homem no Arame” é delicioso, nos detalhes dos problemas técnicos a resolver, no grão de loucura que, evidentemente, foi necessário e nos atalhos da sorte, sem os quais não há projecto humano que valha a pena. James Marsh junta documentos de época – sobretudo fotografias – a algumas reconstituições e à memória dos protagonistas, entrevistados agora sobre um evento a mais de trinta anos de distância. O filme, que ainda há poucos dias ganhou o Óscar para o Melhor Documentário, vê-se de um fôlego.

Jorge Mourinha, Público, 6 de Março de 2009
Um tempo que passou
O que há de interessante em "Homem no Arame" vai para lá do seu tópico. Em Agosto de 1974, o funâmbulo francês Philippe Petit cumpriu um sonho de longa data: esticar um arame entre as duas torres gémeas do World Trade Center de Nova Iorque e andar na corda bamba a 104 andares de distância do chão, no vazio absoluto.
O que o documentarista britânico James Marsh faz em "Homem no Arame" é contar ao pormenor a história desse "faitdivers" perdido no tempo, feito quixotesco que existiu apenas porque Philippe Petit assim o decidiu, ou, mais prosaicamente, apenas porque. Porque não há outra razão para esticar um arame entre dois edifícios daquele tamanho e atravessá-lo senão por eles estarem lá - é a lógica das grandes aventuras, das grandes conquistas, dos grandes desafios.
O que, no entanto, há de genuinamente interessante em "Homem no Arame" vai para lá do seu tópico: começa por estar na sua estrutura híbrida, em que a um proverbial documentário de "cabeças falantes", com entrevistas contemporâneas e (poucas) imagens de época, se anexa uma reconstituição dos factos realizada em estúdio de modo quase expressionista - porque, na verdade, não existem imagens do feito (tudo foi feito em segredo para não alertar as autoridades que proibiriam certamente
a tentativa). Aí residem algumas das questões mais interessantes do filme:
a oposição entre o pragmatismo e o sonho, entre o "porquê?" e o "porque sim", entre a necessidade de encontrar um motivo e a compreensão de que não é preciso motivo nenhum. Mas também a dúvida sobre a veracidade de tudo isto - se algo não ficou registado, existiu realmente? Algo que apenas perdura na memória de poucos tem o mesmo peso de um acontecimento que todos recordam?
Claro que, depois, tudo isto ganha uma outra dimensão por ter acontecido nas torres gémeas - a sombra do 11 de Setembro paira sobre todo o filme, a sensação de "Homem no Arame" estar a resgatar uma "pequena história" que de outro modo teria sido esquecida apenas por acontecer neste sítio. A verdade, ainda assim, é outra, e é isso que é também fascinante no filme de James Marsh (que venceu o Óscar de melhor documentário mas foi produzido para televisão, para a grelha documental da BBC Storyville, e que, por vezes, parece "pequeno demais", um pouco perdido no grande
écrã): percebemos que estas pessoas, estes "heróis" que viveram esta história, pouco têm em comum, já não se falam, perderam o contacto ao longo dos anos. E todos eles têm memórias e verdades diferentes. Marsh não procura sequer conciliar essas memórias e verdades diferentes numa única: limita-se a registar o momento em que foram uma equipa e conseguiram algo que mais ninguém conseguiu, antes ou depois (e que agora já nunca mais se conseguirá), sem se preocupar com os pormenores
que não encaixam na perfeição.
O importante é resgatar ao esquecimento um tempo que passou - e, aí, a aposta está ganha.

5 Fevereiro - Os limites do controlo


Título original: The Limits Of Control

De: Jim Jarmusch

Com: Isaach De Bankolé, Tilda Swinton, Bill Murray, John Hurt, Gael García Bernal, Paz de la Huerta
Género: Drama, Thriller
Classificação: M/12
Origem: ESP/EUA/JAP
Ano: 2009
Cores, 116 min
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Depois de uma pausa de quatro anos, Jim Jarmush ("Flores Partidas", "Vencidos pela Lei", "Café e Cigarros") regressa com a história de um homem marginal, um solitário em viagem por Espanha. Sabemos que ele está prestes a terminar um trabalho ilícito, sabemos que ele tem um destino, nada mais. A sua viagem percorre Espanha, mas percorre essencialmente a sua consciência.
Com personagens sem nome, encarnadas por um leque invejável de actores (Isaach De Bankolé, Tilda Swinton, Bill Murray, John Hurt, Gael García Bernal, etc), este é um filme peculiar sobre os limites do controlo, mesmo para um profissional do crime.


Luís Miguel Oliveira, in PÚBLICO, 28 de Julho de 2009
O centro e as arestas
É um filme de um homem antigo, a tentar lembrar os valores da antiguidade num mundo de gostos estereotipados e sem memória.
 
Os anos passam, e Jim Jarmusch, que já foi a personificação de um cinema americano jovem, rebelde e marginal, tem agora 56 anos e começa a personificar um cinema americano antigo, rebelde e marginal. É um homem antigo, Jarmusch - e isto, antes que se levante alguma dúvida, é uma coisa maravilhosa.
 
"Os Limites do Controlo" é um filme de um homem antigo, a tentar lembrar os valores da antiguidade (não necessariamente a dita "clássica" embora nem ela deva ser excluída) num mundo de gostos estereotipados e sem memória. É um canto pela diversidade artística e cultural, que encontra o mesmo esplendor num filme, no artesanato de uma tribo índia da América do Sul, num quadro de Juan Gris, na arquitectura madrilena, numa canção. Que faz ouvir o inglês, o espanhol, o francês, o japonês, e aprecia cada língua como se tivessem o mesmo valor de mercado.
 
"Os Limites do Controlo" é um lamento por um mundo obliterado pela cultura de massas, não porque tenha alguma coisa contra os objectos produzidos pela cultura de massas mas porque sofre com o esmagamento do resto - do que é residual, marginal, local, único, específico. Como diz uma frase, ouvida várias vezes e em várias línguas (num filme construído todo em rimas e repetições, e não apenas nos diálogos), "o universo não tem centro nem arestas". Mas, como se torna claro no último dos encontros do granítico Isaach de Bankolé (improvável, mas genial, mistura africana de uma disciplina de samurai com a impassibilidade de Robert Mitchum e a frieza de Lee Marvin), houve uma usurpação: alguém ocupou uma porção do universo e decidiu que aquela porção era o centro, tratando a seguir de começar a limar o que decidiu que eram as arestas. "Os Limites do Controlo" fala em nome das "arestas", e conta a história da revolta da margem contra o centro - é uma metáfora, mas Jarmusch toma-a como convém: pela sua literalidade. Uma espécie de cosmogonia (des)esperançosa, uma fábula triste e cansada mesmo quando parece divertida e a agitada.
 
Triste e cansada já deve ter dado para perceber, concentremo-nos no divertido e agitado. "Agitado" não é piada - "Os Limites do Controlo" não foi feito a pensar, digamos, em pessoas impacientes, tem o seu ritmo e os seus rituais e leva-os muito a sério; mas é um facto que se passam imensas coisas e imensas peripécias. Tem a estrutura narrativa de que Jarmusch mais gosta, a de uma viagem. Isaach de Bankolé, que se comporta como os assassinos contratados (tipo filme de Melville) mas durante algum tempo isso é tudo o que sabemos dele (ou seja, "que se comporta como um assassino contratado"), é despachado para Espanha numa missão cujos pormenores são omitidos ao espectador (ou, o que vai dar ao mesmo, são dados por charadas deliciosa e misticamente incompreensíveis).
 
Madrid, depois Sevilha, finalmente uma aldeola andaluza. Para além de esperar, sentado em cafés e esplanadas (sempre dois "espressos" ao mesmo tempo, homem de hábitos enraizados) ou em incursões no Museu Rainha Sofia (cujos quadros e objectos funcionam como os "cartoons" de "Ghost Dog", anunciando coisas que vão acontecer a seguir), tem vários encontros. Primeiro com uma rapariga, que está sempre nua (ou de gabardine transparente), saiu direitinha da primeira cena do "Desprezo" ("gostas do meu rabo?", pergunta a Isaach, e isto nunca foi citado desta maneira tão divertida), e cujo papel na "organização" permanece obscuro. Depois, uma série de encontros fugazes para sessões de "coffee and cigarettes" - quanto mais aborrecerem Jarmusch com a história de que os filmes dele têm "lógica de filme de sketches" é certo e sabido que ele não vai deixar de os fazer assim. A cada encontro, Isaach e o coadjuvante trocam umas caixinhas de fósforos (coisa arcaica) e isso é uma espécie de sinal para o próximo encontro ou para o próximo destino. Falam de pintura, de música, de ciência, de cinema (Tilda Swinton, em loura hitchcockiana: "o que de mais gosto nos filmes é quando mostram só gente sentada a conversar", assim descrevendo sinteticamente o plano em que está, e que Jarmusch depois, prolonga por mais algum tempo). Alguns são figuras familiares no "universo Jarmusch": John Hurt, Yuki Kudoh (a miúda japonesa do "Mystery Train" de há vinte anos), e Bill Murray, em vilão, a fazer-se tão oleoso quanto consegue (genial, o plano da "vanitas" com a peruca loura na caveira).
 
Quando acaba, na cena destinada a provar que todo o controlo tem os seus limites, "Os Limites do Controlo" está que parece uma daquelas ficções científicas distópicas sobre mundos totalitários, sobre mundos "do centro". À independência já não basta a melancolia, pede-se-lhe um pouco de ferocidade. É a novidade de "Os Limites do Controlo", filme belo e inventivo, zangado e elegante, filme de homem antigo.